5.3. Roteiro para discussão: Clémence Royer, gênero e raça#
Universidade Estadual de Feira de Santa
Departamento de Educação
Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas
Disciplina EDU 182 Construção do Conhecimento Escolar e Ensino de Evolução
Professora Claudia Sepulveda
Título: Clémence Royer, gênero e raça
Abaixo você encontrará alguns trechos retirados do prefácio escrito por Clémence Royer na tradução da primeira edição francesa do A Origem das Espécies (1862) e outros fragmentos encontrados em fontes secundárias. Após a leitura, responda as questões a seguir.
Comentários de Clémence sobre a obra:#
Trecho 1
Á primeira vista, parece que o Sr. Darwin teve pouco cuidado para conectar e encadear suas ideias. Ele apresenta a cada uma delas o que vale, em sua posição, sob seu título. Nós os chamaríamos numerados. É quase um dicionário metódico. Mas logo depois percebemos, pelo contrário, que essas ideias formam uma cadeia contínua de raciocínio rígido, preciso e conclusivo. Como ele diz no capítulo anterior, “este volume é apenas uma longa argumentação”. Mas encontramos todas as razões a favor e contra sua teoria, opostas e equilibradas. É um cálculo real de probabilidades que não é divertido, repito, mas é importante estudar e saber; e é porque é importante que seja estudado e conhecido que eu traduzi, vendo que demoramos muito a cumprir esse dever em relação à verdadeira ciência, especialmente vendo o quanto este livro foi mal compreendido, mal julgado, provavelmente porque não foi lido. Só que muitas vezes lamento minha insuficiência por essa tarefa, que um cientista mais especializado teria realizado melhor em seus detalhes. Se eu quis traduzir este livro é porque eu tinha certeza de compreender o todo. Eu tentei especialmente traduzir o pensamento do autor e espero ter entendido bem, nem sempre bem expresso. Acho que posso reivindicar um tipo de solidariedade nas doutrinas do Sr. Darwin; no mesmo inverno em que seu trabalho foi publicado em Londres, emiti do meu lado, embora menos inteligente e menos completamente, as mesmas ideias sobre a sucessão e a evolução progressiva dos seres vivos, em um curso de Filosofia da Natureza e História, que fiz em Lausane e repeti parcialmente em outras cidades (p.15).
Trecho 2
Permiti-me acrescentar ao meu texto algumas observações pessoais na forma de notas. Na maioria das vezes, são apenas desenvolvimentos da teoria, detalhes que as sustentam, algumas vezes visões gerais que o resumem em traços largos e mais sinteticamente do que os hábitos mentais dos naturalistas contemporâneos, e do Sr. Darwin em particular. Muitos certamente me acusarão de ter dito banalidades conhecidas entre eles, que de fato eu não as abordaria, mas que eu inseri para um público menos especializado, entre os quais gostaria de ver espalhando este livro cheio de lições. Finalmente, muito mais do que o Sr. Darwin, admito que mereço a reprovação de ter ousado muitas suposições. É porque acredito que, enquanto esperam teorias, as próprias hipóteses têm sua utilidade na medida em que são preparadas. Confessarei até que, do meu ponto de vista e de uma disposição muito mais especulativa do que empírica, o Sr. Darwin não me parece ousado o suficiente. É por prudência que ele não chega ao fim de seu sistema, que ele pare no meio da cadeia de suas consequências? (p.16)
SOBRE RAÇA (NO PREFÁCIO)#
Trecho 1
A lei da eleição natural aplicada à humanidade mostra com surpresa, com dor, até que ponto nossas leis políticas e civis, bem como nossa moral religiosa, estão até agora erradas. Basta apontar aqui um dos menores vícios: é o exagero dessa piedade, dessa caridade, daquela fraternidade, em que nossa era cristã sempre buscou o ideal da virtude social; é o exagero da devoção em si, quando consiste em sacrificar sempre e em tudo o que é forte para o que é fraco, do bem para o mal, os seres bem dotados de espírito e corpo para os seres cruéis e maldosos. Qual é o resultado dessa proteção exclusiva e ininteligente, concedida aos fracos, aos enfermos, aos incuráveis, aos próprios ímpios, a todas as desgraças da natureza? É porque os males com os quais são afligidos tendem a se perpetuar e se multiplicar indefinidamente; é que o mal aumenta em vez de diminuir e tende a aumentar às custas do bem. (p.25).
Trecho 2
Finalmente, a teoria do Sr. Darwin, dando-nos um pouco de noções mais claras de nossa verdadeira origem, não faz justiça a tantas doutrinas, sistemas e utopias políticas, cuja tendência generosa, mas certamente falsa, é alcançar uma igualdade impossível, prejudicial e antinatural entre todos os homens. Nada é mais evidente do que as desigualdades das várias raças humanas; nada ainda mais acentuado do que essas desigualdades entre os vários indivíduos da mesma raça. Os dados da teoria da eleição natural não podem mais nos deixar em dúvida se as raças superiores ocorreram sucessivamente; e que, ao contrário, sob a lei do progresso, eles não pretendem suplantar as raças inferiores, progredindo mais, e não se misturam e se fundem com elas, correndo o risco de serem absorvidas por travessias que reduziriam o nível médio das espécies. Em uma palavra, as raças humanas não são espécies distintas, mas são variedades bem definidas e muito desiguais; e seria necessário pensar duas vezes em proclamar a igualdade política e civil em um povo composto por uma minoria de indo alemães e a maioria de mongóis ou negros (p.27).
Trecho 3
Portanto, é especialmente em suas consequências humanitárias, em suas consequências morais, que a teoria do Sr. Darwin é frutífera. Essas consequências, posso indicar aqui; só elas encheriam um livro inteiro que eu gostaria de poder escrever um dia. Essa teoria contém em si toda uma filosofia da natureza e toda uma filosofia da humanidade. Nunca algo tão vasto foi concebido na história natural: pode-se dizer que é a síntese das leis econômicas universais, a ciência social natural por excelência, o código dos seres vivos de todas as raças e idades. Encontraremos lá a razão de ser de nossos instintos, o por que há tanto tempo procuramos nossas maneiras, a origem tão misteriosa da noção de dever e sua importância capital para a conservação das espécies.
SOBRE GÊNERO (NO PREFÁCIO)#
Trecho 1
Se a teoria do Sr. Darwin explica o presente, ela nos dá a mesma explicação do passado. O primeiro: casais humanos, nos quais a união conjugal era mais durável, também eram mais prósperos, porque os membros do grupo familiar, sendo mais numerosos, prestavam-se uns aos outros uma assistência mais eficaz. De modo que em todos os lugares as raças patriarcais rapidamente substituíram raças selvagens que viviam isoladas; e o instinto da família, o primeiro fundamento da ordem social, é estabelecido hereditariamente. Nada é mais impressionante do que a inferioridade do homem em relação à beleza, se não a inferioridade da mulher em relação à força. É porque as raças nas quais a mulher era mais temerosa, por si e por seus filhos, do mesmo modo as famílias em que o homem era mais forte e mais corajoso para defender a sua esposa e seus filhos, mesmo com o risco de sua vida, necessariamente tiveram que se multiplicar mais rapidamente e expulsar as outras raças. Por outro lado, o homem, tendo-se tornado o mais forte, conseguiu impor-se a companheira que mais lhe agradou; e a partir de então a mulher, tendo apenas que agradar e sofrer, tornou-se cada vez mais bonita de acordo com o ideal do homem, que se tornou ainda mais forte, tendo apenas que impor, comandar e proteger. Pouco a pouco, à medida que as pessoas se tornaram mais civilizadas, houve inteligência, isto é, força mental, como tinha sido a força física; e a mulher tornou-se cada vez mais fraca, passando do poder paterno para o poder conjugal sem jamais poder se indispor, e sendo eleita e escolhida para esposa somente por causa de sua beleza e docilidade, legando de geração em geração para suas filhas uma passividade mental, se não cada vez maior, pelo menos mais e mais decidida, em relação à atividade do espírito viril do homem constantemente solicitado a progredir. Se o homem ainda não é mais forte, mais feio e mais inteligente, deve ser atribuído à parte hereditária da beleza, fraqueza e falta de inteligência que possui de toda a sua linhagem de ancestrais maternos; se a mulher nunca realiza o supremo ideal de beleza, se ainda tem forças para agitar os membros e dar à luz filhos, se finalmente não é completamente estúpida e estupefata, é indubitavelmente devido a que, felizmente para ela, o sangue dos tons paternos que flui em suas veias preservou um pouco de inteligência, um pouco de força e um pouco de feiura. Pode-se concluir com isso que, para acelerar o rápido progresso da corrida em todas as direções, seria necessário pedir à mulher uma parte do que até agora foi pedido apenas ao homem, ou seja, por exemplo, força unida à beleza, inteligência unida à gentileza, e ao homem um pouco mais do ideal unido ao poder da mente e ao vigor do corpo (p.27).
Enunciado do curso de filosofia para mulheres ministrado por Clémence Royer (FRAISSE, 1983).#
“As duas metades da humanidade, por causa de uma diferença muito grande na educação, falam dois dialetos diferentes, de modo que é difícil concordar em certos assuntos e até nos assuntos mais importantes. Existem mais de dez mil palavras na língua que as mulheres nunca ouviram pronunciar, cujo significado elas ignoraram, e ainda assim seria suficiente para um pequeno dicionário etimológico. Isso foi o suficiente para que eu percebesse que os cientistas, de fato, cercaram o campo da ciência com uma cobertura de espinhos, mas além dele está cheio de flores. A partir de então, resolvi fazer um buraco nessa cerca ou pular sobre ela, se necessário. Entrei no campo, peguei um buquê de flores. E é esse buquê que eu venho lhe oferecer”
Discurso de Clémence Royer na Sociedade de Antropologia de Paris (HARVEY, 1997).#
“Até agora, a ciência como a lei, feita exclusivamente por homens, sempre considerou a mulher como um ser absolutamente passivo, sem instintos ou paixões ou seus próprios interesses; como um material puramente plástico capaz de assumir qualquer forma que lhe seja dada sem resistência; um ser sem os recursos internos para reagir contra a educação que recebe ou contra a disciplina a que se submete como parte da lei, costume ou opinião. “Mulher”, concluiu ela, “não é feita assim”
Questões para discussão:#
Em seu prefácio na tradução francesa de A Origem das espécies, Clémence Royer substituiu o termo “seleção natural” por “eleição natural”. Como você avalia os trechos em que ela fala sobre raça? Que ideias iniciais presentes no pensamento de Clémence justificaria a troca do conceito de “seleção natural” para “eleição natural”? Como você diferenciaria estes dois conceitos?
Como Clémence Royer relaciona o conceito de seleção natural, ou em suas palavras, “eleição natural”, proposto por Darwin com o desenvolvimento (ou “melhoramento”) da espécie humana?
Devido aos seus pensamentos e proposições racistas e eugenistas, Clémence Royer foi considerada uma das precursoras do darwinismo social na França. Tendo até mesmo, possivelmente, contribuído para o desenvolvimento e ampliação de ideias racistas e eugenistas no Brasil. Apesar disso, ela segue invisibilizada pela ciência. Como você avalia esta questão?
Pensando especificamente nas questões relacionadas ao papel da mulher, em um contexto europeu do século XIX, como você avalia a atitude de Clémence Royer em contestar e confrontar as ideias trazidas por Darwin?
Na sessão sobre gênero, no trecho 1, Clémence diz “Nada é mais impressionante do que a inferioridade do homem em relação à beleza, se não a inferioridade, da mulher em relação à força”. Em seguida, ela explica esse pensamento. Como você avalia as questões relacionadas aos papéis e estereótipos de gênero trazidos por Clémence neste trecho? Você acredita que estas diferenças entre homem e mulher podem ser explicadas biologicamente? Apesar destas falas, Clémence Royer acreditava no potencial feminino, principalmente pela via da educação, tendo até ministrado cursos específicos para as mulheres. Como você interpreta este aspecto de sua trajetória?
Na sessão sobre os comentários de Clémence Royer à obra de Darwin, tanto no trecho 1 quanto no 2, Clémence fala um pouco sobre os motivos que a levaram a traduzir o Origens. Segundo bibliografia sobre o tema, era comum no século XIX haver mulheres tradutoras de grandes obras na França. Porém, como vimos, Clémence foi muito além de meramente traduzir o livro. Tendo em mente as oportunidades (ou a falta delas) para as mulheres no referido século, como você interpreta o uso que Clémence fez desta oportunidade?
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